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O retorno: doutorado no Brasil, período sanduíche e diferenças entre Brasil-Alemanha

O título dessa postagem mistura três coisas bastante densas, mas serei o mais breve possível. Notei que se passaram cerca de dois anos desde que escrevi aqui no blog pela última vez, com a série sobre Programação Paralela. Desde então, iniciei o doutorado e o tempo acabou ficando realmente curto para conciliar a escrita de projetos, artigos, código e postagens no blog. Porém, com as últimas experiências e depois de conversas com amigos, resolvi compartilhar um pouco do aprendizado e impressões que obtive nos seis meses que fiquei morando em Karlsruhe, na Alemanha, para realizar uma estadia de pesquisa.



O doutorado no Brasil

É impressionante a quantidade de pessoas (algumas até com nível com superior) no Brasil que sequer sabem dizer o que é um doutorado. Isso já era aparente antes da minha ida para fora, mas ficou ainda mais claro ao constatar que lá o apoio e o respeito aos doutorandos é bem maior do que em terras brasileiras. Então, para quem ainda não sabe ou tem dúvidas, vale a pena mencionar que um doutorado vai muito além de um grau acadêmico obtido e do conhecimento específico adquirido em uma determinada área. Na verdade, o processo de doutoramento deve permitir que, ao seu término, o aluno esteja apto a produzir novos conhecimentos, além de dominar outros já estabelecidos dentro da sua área de atuação. Dito isso, seria de grande importância para o futuro do país (e.g., competitividade da indústria, qualidade de mão-de-obra) que os projetos de pesquisa no Brasil fossem mais incentivados (não só pelo poder público, mas também pelas instituições privadas) e respeitados pela sociedade.

Período Sanduíche

Muita gente me perguntou se valeu a pena para a minha pesquisa ter passado por esse processo, que no meu caso durou seis meses. Eu só respondo que: valeu muito a pena e que seis meses é pouco. Na verdade, creio que até um ano ainda seja pouco, quando você começa a ver a seriedade com que pesquisadores e doutorandos são tratados - ao menos na região que fui na Alemanha (Baden-Württemberg). Não que a pesquisa não seja levada a sério no centro que realizo meu doutorado no Brasil, é mais a perspectiva externa que senti diferente: o suporte, o investimento, a estrutura, a sondagem de empresas, etc..
Por exemplo, no grupo de pesquisa em redes que fiz parte no Instituto de Tecnologia de Karlsruhe, cada doutorando tem uma sala própria, uma conta para usar um testbed de alto desempenho e apoio total na publicação de artigos em eventos (independente do qualis), produção de posters, viagens (seja para apresentar artigos ou se reunir com outros grupos de pesquisa), e diversos projetos em colaboração com empresas.
Isso sem falar que o período sanduíche em um lugar totalmente fora da sua zona de conforto te faz enxergar o mundo com outros olhos, é realmente um leque de oportunidades que se abre e de ideias que começam a brotar a todo momento que você vê algo diferente daquilo que você está acostumado em diversas áreas, seja na sua vida acadêmica ou pessoal.
Então, todos aqueles benefícios de um intercâmbio são potencializados em um doutorado sanduíche. Apesar de alguns colegas já terem relatado que um período curto de doutorado sanduíche atrapalhou o andamento da pesquisa, eu acredito que os ganhos em crescimento pessoal compensam pequenas perdas.

Diferenças entre Brasil e Alemanha

Essa seção vai discutir as diferenças mais notórias no cotidiano que identifiquei. Dividi essas diferenças em três categorias: o comportamento dos cidadãos de cada país, a estrutura das cidades e a academia.

Brasileiros x Alemães
Bom, uma das frases mais certas que rondou as conversas com amigos alemães foi: esteriótipos estão em todo lugar (além da piada sobre o 7x1). Antes de ir, muita gente aqui no Brasil me falava que os alemães são fechados, assim como todo alemão que conversei perguntou como era o carnaval do Rio de Janeiro (nunca fui :-) ). Escutei alemães falando que os suíços é que eram fechados, e assim por diante. O melhor a fazer é abrir a cabeça e ter humildade para aprender e ensinar um pouco mais de cada cultura e o que cada sociedade tem de melhor a oferecer.
Por exemplo, eu fiquei impressionado com o quanto os alemães eram prestativos (apesar de alguns servidores públicos serem estúpidos, mas nada muito diferente do que acontece em nossa terra tupiniquim), com o quanto eles bebem cerveja e o quanto a cerveja é realmente boa. Outros esteriótipos como: pontualidade, perfeccionismo, e certo distanciamento entre as pessoas eu pude presenciar em outras ocasiões.
Além dessas questões mais conhecidas, um fator que também me chamou a atenção são os extremos opostos que brasileiros e alemães estão quando a questão é privacidade: casais nas ruas, utilização de redes sociais, contas de e-mail, uso de cartão de crédito, tudo isso é realmente o oposto se compararmos o comportamento da grande maioria de pessoas dos dois países. Fato curioso: os alemães andam e comem muito rápido. Outro ponto interessante é o foco na qualidade de vida. Enquanto muitos amigos e colegas brasileiros se preocupam mais com status, roupas, carros (muito influenciados pelo estilo de vida americano) e etc., os alemães (principalmente os de vinte e poucos anos) estão mais preocupados com qualidade de vida (e.g., segurança financeira, melhor cidade para morar, viagens).

Estrutura das Cidades
Apesar de ser injusta a comparação entre qualidade de estrutura de um país de terceiro mundo com aquela presente em países de primeiro mundo, vou apenas destacar alguns elementos como um leigo em urbanismo, que considera ser possível que fatores positivos das cidades alemãs pudessem ser adotados na estrutura urbana de cidades brasileiras.
Começo com o planejamento das cidades. Diversos interiores do Brasil ainda podem ser planejados, o crescimento das nossas cidades é completamente desorganizado na maioria das vezes. Um plano diretor, políticas de incentivo de habitação, resolveriam de forma mais fácil questões básicas como saneamento, iluminação pública e acessibilidade. É admirável a quantidade de calçadas acessíveis e arborizadas, além de ciclovias que existem nas cidades alemãs. Assim como é inacreditável o baixo custo disso quando feito no início da urbanização de uma cidade, e que mesmo assim não fazemos nas cidades brasileiras.
A segurança é um ponto à parte, é novamente injusto comparar esse nosso caos com o fluxo de uma cidade relativamente pequena como Karlsruhe. Porém, a teoria das janelas quebradas é vista a todo momento na Alemanha, e na área de segurança não é diferente. A sensação de pedalar de madrugada, com celular na mão, com 99% de confiança de que não seria assaltado é indescritível.
A limpeza urbana, o transporte público e o cuidado com prédios históricos é um capítulo à parte que podemos discutir em outro momento, mas de fato a fama daquela região não é por acaso. A conservação das cidades, o respeito aos usuários dos serviços públicos, aos turistas, tudo isso se traduz em desenvolvimento.

Academia Alemã
Uma das coisas que me deixou mais espantado no pouco tempo de convivência com os alemães foi saber que, desde um certo ponto da infância, a criança ou adolescente já é direcionado para uma escola específica da sua futura área de formação. Isso pode (e, na minha opinião é) parecer bastante rigoroso (para não dizer maldoso), mas resulta em trabalhos mais comuns como os de: pedreiro, gari, etc., sendo realizados por pessoas com uma qualificação muito superior a encontrada no Brasil, por exemplo. Ou seja, dependendo do desempenho das crianças em séries iniciais, já se dá início ao processo de encaminhamento dessa criança para formação de mão-de-obra em profissões não muito valorizadas socialmente e economicamente.
Outro fator que difere muito, ao menos na área de Ciência da Computação, e especificamente no meu grupo de pesquisa, é que os doutorandos têm um suporte muito grande de estudantes de bacharelado e mestrado na realização de suas teses. Dos doutorandos que tive a oportunidade de trabalhar em conjunto, cada um possuía no mínimo três alunos realizando atividades para o desenvolvimento de pesquisas. E mais, trabalhos de conclusão de curso (TCCs) são, de fato, resultados de pesquisa em colaboração com projetos reais de pesquisa, ou soluções de problemas reais da comunidade, e não apenas trabalhos individuais dos alunos dos últimos anos de cursos de graduação.
Além disso, a parceria entre empresas alemãs e as universidades é visível na grade maioria dos projetos de pesquisa. A pesquisa é focada não só na formação de pessoal, mas também no desenvolvimento científico e tecnológico da indústria. Talvez seja esse diferencial que acaba ajudando no reconhecimento do trabalho de professores e doutorandos perante a sociedade.
Por fim, muitas pessoas perguntam sobre o idioma, e confesso que aprendi muito pouco do alemão. Sendo assim, o inglês foi o principal idioma de comunicação, tanto dentro do centro de pesquisa quanto no cotidiano (em algumas situações a mímica ajuda). Porém, eu fiquei surpreso com a diferença no nível do inglês entre a academia brasileira e a alemã (sem colocar a vida cotidiana na conta). Confesso que não consigo entender o motivo de tanta diferença, já que a duração dos cursos de inglês de lá é a mesma daqui (os alunos aprendem inglês de maneira equivalente à que aprendemos no nosso ensino médio).

No mais, o recado final é que: o importante não é simplesmente comparar, até injustamente (por questões históricas), os dois países. O importante é que após uma experiência como essa, ficamos apenas querendo que os pontos positivos, vísiveis em países como a Alemanha, se repitam por aqui. Apesar de eles também lidarem com corrupção e problemas políticos, o mínimo de respeito entre os cidadãos e para com os cidadãos existe. Ou seja, definitivamente, morar em um lugar como Karlsruhe, organizado e seguro, é muito bom. Mas seria igualmente bom, ou até melhor, morar em uma cidade brasileira, igualmente organizada e segura.



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3 Comentários

  1. Após ler teu post, abri um pouco mais minha visão para o intercambio. Muito bom msm.

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  2. Lembro, na verdade, quão difícil foi o retorno. Ainda temo uma especulação quanto ao tempo necessário para se estar fora dessa 'bendita' zona de conforto e tomar a devida vergonha na cara. Diferente de você, que foi vivenciando uma experiência dessas no doutorado (um outro nível de maturidade acadêmica), eu fiz mobilidade acadêmica na graduação (ciência sem fronteiras). Que sofrimento. Quantas incertezas!
    Como você disse, sem querer menosprezar o lugar em que exercemos certas atividades, é discrepante a diferença quando alocados num país de primeiro mundo que visa educação, tecnologia e desenvolvimento sempre como prioridades.

    Enfim, atualiza isso aqui! :D
    (Se tiver tempo, claro. Pelas contas, você deve estar no final do doutorado. Parabéns por isso.)

    Como foi retornar? Se sentiu como peixinho fora d´água? Acho que passei o mesmo tempo que passei fora pra me sentir em casa de novo.

    Muita luz e sabedoria por seu caminho :*

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